Montalbano, um policial de muitos olhares[1]

Júlio Pimentel Pinto

 

A Sicilia de Andrea Camilleri e Salvo Montalbano

O maior sucesso editorial da Itália hoje é Andrea Camilleri. Camilleri é um escritor com mais de setenta anos, que trabalhou a maior parte de sua vida como roteirista e diretor de teatro e de televisão. Depois dos sessenta anos, dedicou-se mais diretamente à literatura, escrevendo, desde então, romances históricos e histórias policiais.

Nascido em Porto Empédocle, na costa mediterrânea da Sicilia, Camilleri ambienta a maior parte de seus livros na cidade siciliana imaginária de Vigàta. Em Vigàta transcorrem vários romances históricos, de fina ambientação e de texto cuidadosamente trabalhado. A narrativa é alinear, as vozes misturam-se, os períodos são mais longos e repletos de alusões e citações cifradas. O vocabulário escolhido remete a expressões pertinentes ao tempo em que se desenrolam as histórias. Poucos já foram traduzidos e publicados no Brasil: Um fio de fumaça (2000), Por uma linha de telefone (2001) e A ópera maldita (2004). Os outros continuam desconhecidos do leitor brasileiro. Sempre na Sicilia, acontecem as tramas históricas ou de mistério de Il corso delle cose (1978), La strage dimenticata (1984), La stagione della caccia (1992), La bolla di componenda (1993), Il birraio de Preston (1995), La mossa del cavallo (1999), La scomparsa di Patò (2000), Il Re di Girgenti (2001), Le inchieste del comissario Collura (2002) ou La presa di Macalè (2003)[2]. Fora isso, publicou inúmeros livros de teatro, histórias curtas, fez adaptações para cinema, teatro e tv.

Mas o grande sucesso de Camilleri veio com Salvo Montalbano, comissário de polícia na Vigàta dos dias de hoje e personagem central de sete romances, nove novelas e cinquenta contos policiais reunidos em dois livros. Além da grande vendagem (que, na Itália, significa alguns milhões de exemplares vendidos de cada livro), todos os romances e um dos contos foram transformados em filmes para televisão, ocasionalmente com dramatização do próprio Camilleri. A série ampliou o sucesso do personagem, aumentou as vendas dos livros e difundiu, definitivamente, os personagens dos gialli de Camilleri.

Os filmes – feitos em película, o que aumenta sensivelmente sua qualidade visual – são longos (cerca de duas horas) e exploram bastante, como era de se esperar, as belezas e os contrastes da paisagem siciliana, que oscila entre a aridez e o mar. Mas investem também muito nos personagens e nos diálogos, assumindo uma preocupação que é grande nos livros. Claro que, por melhor que sejam, os filmes não dão conta das questões trazidas pelos livros. Pelas diferenças de linguagem, de ritmo, etc., limitam-se a reproduzir a trama central, misturando num mesmo filme aspectos de várias histórias e desenvolvendo outra linha narrativa, distinta da pretendida no texto escrito.

Os romances de Montalbano, pela ordem de escritura e publicação, são: A forma da água (1994), O cão de terracota (1996), Ladrão de merendas (1996), A voz do violino (1998), Excursão a Tindari (2000), O cheiro da noite (2001), Il giro di boa (2003) e La pazienza del ragno (2004). La paura di Montalbano (2002) e La prima indagine di Montalbano (2004) reúnem, respectivamente, seis e três novelas, de tamanhos variados. Trinta dos contos estão reunidos no volume Um mês com Montalbano (1998), outros vinte estão em Gli arancini di Montalbano (1999). No Brasil foram traduzidos, até 2003, os seis primeiros romances e a primeira reunião de contos[3].

Camilleri conta que, após escrever o primeiro romance de Montalbano, A forma da água, não tinha intenção de manter o personagem. Mas, além da boa receptividade que o livro teve, percebeu que poderia desenvolver mais as tramas e fazer de Montalbano uma espécie de protagonista de sua tese principal: o siciliano circula numa realidade que não responde às exigências da lógica elementar, move-se entre obscuridades e indefinições, tem marcas humanistas fundas, mas nem sempre as manifesta em meio às aparências e às cerimônias que deve desempenhar no cotidiano. Por isso Montalbano, tornado exemplar da identidade siciliana, prosseguiu por vários outros livros e não deve desaparecer tão cedo.

A busca de identificação do siciliano aparece também nos outros livros de Camilleri. Nas histórias do comissário, porém, é exposta de forma direta e, na maior parte das vezes, risível. O texto, escrito de forma simplificada – principalmente pela escolha das palavras e pela ordem direta das frases – mas nem por isso descuidada, facilita a comunicação com o leitor geralmente ignorante das coisas da Sicilia (e aqui não estamos falando apenas do leitor estrangeiro, mas também da maioria dos italianos). A presença de inúmeros termos e expressões dialetais não cria dificuldades: soa curioso e, muitas vezes, o uso do dialeto surpreende o próprio comissário, que traduz a expressão saída da boca de amigos ou subordinados. O ritmo e as formas sincopadas das falas dialetais combinam com o italiano empregado por Camilleri, renitente perante interferências estrangeiras e proporcionador de peculiar sonoridade da língua, em sua combinação com o “siciliano falado”, e às vezes inventado, dos personagens.

Montalbano é um personagem curioso. Seu humor oscila, de ensolarado a nebuloso, conforme o clima da ilha. Come com voracidade e em quantidades impressionantes, mas ritualiza as refeições, tem critérios e bom gosto gastronômico.

É quase sempre machista. Em Ladrão de merendas, por exemplo, há uma passagem em que um cadáver é encontrado dentro de um elevador. Ao seu lado, uma garrafa de vinho. Em suas primeiras investigações com os moradores do prédio, Montalbano descobre que duas mulheres – mãe e filha, reclusas e bastante religiosas – viram o cadáver no elevador mas, por temor ou pudor, não avisaram a polícia. Descobre também que um velho não só viu o cadáver, mas andou ao seu lado no elevador e lá deixou uma garrafa de vinho, depois encontrada ao lado do morto. O homem estava arrasado porque era o único vinho que poderia comprar na semana. Diante das duas informações, Montalbano não tem dúvida sobre como agir. Mesmo sabendo que as mulheres não têm nenhuma relação com o crime, manda levá-las, algemadas e com grande estardalhaço, para a delegacia. Pretende, assim, puni-las pela omissão. Ao velho, que também se omitiu, dá uma nota de dez mil liras para que ele compre outra garrafa de vinho.

Montalbano também é muitas vezes vulgar. No mundo masculino e evidentemente grosseiro da delegacia, destaca-se, sobretudo nas horas de humor nebuloso ou diante de obrigações burocráticas, pelas respostas ásperas e pelos palavrões. Mas é recheado do humanismo que Camilleri enxerga no fundo do siciliano: comisera-se diante de inocentes acusados de crimes, reage fortemente às tentativas de uso da polícia para objetivos não-públicos, assume posições democráticas – usualmente identificadas como esquerdistas num país em que a polarização entre direita e esquerda é tradicional.

Radicalmente humano, vive as contradições a que as relações pessoais nos levam. Em Ladrão de merendas, atormenta-se com a distância e com a morte próxima e inevitável do pai, mas não viaja para vê-lo e, quando vai, alivia-se ao saber que ele já morreu e que o diálogo, certamente artificial, que teriam não acontecerá. Sofre a perda e regozija-se por não ter vivido – e imposto ao pai – uma cena que julga desnecessária. Na mesma história, em evidente paralelo com a morte paterna, horroriza-se face à possibilidade de casar-se e de ter um filho, com todas as restrições à sua plena independência que isso significa. Termina propondo casamento à Livia, namorada que mora na distante Genova, e pleiteando a adoção do jovem marroquino que dá nome ao livro. No livro seguinte, A voz do violino, tudo – casamento e adoção – entra em crise antes de começar. Surge Anna, mulher cujo mero toque de mão o arrebata. Mas Montalbano conclui que muitas trocas já aconteceram e prefere continuar com Livia.

As mulheres, aliás, são um capítulo a parte. Tradicionalmente, o chamado gênero policial costuma apresentar mulheres lindas e perturbadoras. Afinal, acredita-se, uma pitada de sexo sempre cai bem na montagem de uma trama de mistério. O leitor, de resto, espera que algo, em algum momento, aconteça. Camilleri inverte a expectativa. A linda sueca Ingrid, por exemplo, ajuda Montalbano em muitas histórias e tem participação destacada em três romances, A forma da água, Excursão a  Tindari e Il giro di boa. Desejada por toda Vigàta, Ingrid flerta deslavadamente com Montalbano, que a recusa.

Camilleri, ao construir Montalbano, injetou-lhe fidelidade plena à Livia e, assim, rechaçou o clichê do detetive galanteador. As mulheres ocasionalmente o instigam, mas o leitor acostumado às aventuras do comissário espera, atento, que nada aconteça. De forma simples e engraçada, esta é apenas a primeira das inversões produzidas por Camilleri no padrão policial.

 

Repetições e variações

Camilleri, na verdade, preocupa-se pouco com a idéia de gênero e de constância de alguns elementos que caracterizaram/caracterizam o policial e estão habitualmente presentes no “giallo” – nome que, devido à cor da capa de uma coleção de livros populares, designa na Itália os livros policiais. As chamadas matrizes genéricas tiveram, no caso do policial, papel duplo. Por um lado, o afirmaram como gênero específico e o marcaram definitivamente. Por outro, o tornaram repetitivo e ocasionalmente produziram sucessões de clichês, mesmo quando pretendiam – seguindo uma disposição, para alguns, “pós-moderna” – caricaturá-los ou fazer do texto uma floresta de signos e citações.

O primeiro aspecto, uniformizador, fez surgirem tendências diferentes dentro do gênero, mas com elementos que tornavam sua associação pertinente. É assim que se pode colocar no mesmo agrupamento autores tão diferentes como Dashiel Hammet ou Agatha Christie, Georges Simenon ou Arthur Conan Doyle, Manuel Vásquez Montalbán ou Luis Lopes Coelho. As diferenças, no caso, são de diversas ordens, o que inclui a distinta construção da ambientação, o grau de crueza empregado nas partes descritivas, o procedimento distinto de desvendamento da trama e de revelação do criminoso, a própria qualidade literária do texto, etc.. A repetição de circunstâncias e o uso reiterado de clichês deram ao policial, em muitos casos, feição mais de entretenimento do que de arte. Passaram a ser livros esquecíveis e esquecidos, lidos a bordo do trem ou do avião, e às vezes deixados lá mesmo. As histórias saiam da memória logo depois de terem sido lidas, porque o objetivo da leitura era apenas descobrir o assassino, importando pouco ou nada o restante da narrativa, visto como mero entorno. Dessa forma, um gênero que pôde ser grandioso – se identificarmos, como se faz usualmente, que tudo começou com Edgar Allan Poe – tornou-se mercadoria barata.

As iniciativas pretensamente “cult” apenas reforçaram sua banalização ao investirem na exposição das matrizes e no tom calculadamente artificial das tramas. Deixar claro para o leitor que se está brincando com as matrizes do gênero é interessante da primeira vez, mas também se torna repetitivo e devolve, novamente, o policial para a mesmice dos ambientes sórdidos e soturnos, repletos de orientais que falam mal a língua, de prostitutas e gigolôs, de bandidos menores, de álcool e fumaça à meia-luz. O leitor brasileiro pode lembrar dos recentes romances de Tony Belloto e de seu detetive particular Remo Bellini. Assumidamente artificiais, as tramas dos livros de Belloto passam-se em ambientes evidentemente criminosos e repetem ou simulam situações de romances policiais célebres. Flerta-se, assim, com um mundo que o leitor já conhece e, inclusive, espera encontrar quando busca um livro desse gênero. O melhor, inclusive, dos livros de Belloto não é ser “pós-moderno” porque cita ininterruptamente, ou “cult” porque lida com artificialismos, mas mostrar algumas impertinências do gênero, como sua difícil adequação às particularidades brasileiras, e mais especificamente paulistanas. O problema é que o fôlego é curto. Apenas citar ou lançar questões produz bom divertimento no início, faz o leitor que identifica as referências sentir-se envolvido, mas é insuficiente para qualificar um texto literário[4].

Para adensar o romance policial, alguns autores recorreram ao acúmulo de informações sobre um determinado tema. A intenção, no caso, além de revelar alguma erudição, é produzir outros interesses na leitura, que acabam por se encaixar na trama central, um quebra-cabeças geralmente rígido. Nesse caso, o nome que certamente vem à cabeça do leitor brasileiro é Rubem Fonseca, que prima por incluir discussões e informações em seus romances de caracterização policial: facas, violinos, charutos. A pesquisa que sustenta o uso das informações é, em geral, bem feita, mas sua presença no romance é ostentatória, tanto porque se empenha em revelar a qualidade da preparação da obra, quanto porque tem o papel de fazer com que o livro seja lido de forma distinta da do policial comum. Algo de orgulho vige por trás da demonstração da pesquisa. E esse orgulho diz que aquele não é um livro simples. Muitos críticos já destacaram esse caráter acessório das informações utilizadas por Fonseca e, ao mesmo tempo, seu esforço por torná-las necessárias para o desenrolar da trama. O resultado também soa falso. E, novamente, não é nesse acúmulo de informações que se pode enxergar a principal qualidade de Fonseca. É na crueza da denúncia social e dos desacertos de uma elite canhestra que ele consegue seus melhores resultados temáticos e narrativos. Por isso é um autor que funciona melhor nos contos, em que a concisão opera favoravelmente ao impacto que pretende produzir. E também por isso foi um autor tão significativo nos anos 70 e perdeu originalidade depois disso, quando passou a repetir-se e a ser exaustivamente repetido por gerações de escritores.

Mas há exceções no atual cenário brasileiro. Joaquim Nogueira, por exemplo, ele próprio ex-delegado, narra as aventuras do honestíssimo investigador Venício por uma São Paulo sombria e em meio a personagens sórdidos[5]. E, principalmente, o carioca Luis Alfredo Garcia-Roza, criador do curioso detetive Espinosa. Livros de escritura bem-cuidada, seus romances policiais recentes merecem leitura e análise mais atenta do que é possível num comentário rápido. De qualquer forma, talvez se encontre nas quatro histórias de Espinosa o que há, no Brasil,  de mais novo e original no gênero. Inclusive pelo reconhecimento da fragilidade do método indiciário e da própria lógica absoluta que, acredita-se, orienta o pensamento do criminoso ou do investigador. Nesse ponto, aliás, Espinosa é parente próximo de Montalbano. Outra coincidência entre ambos é o apetite literário: ambos são vorazes leitores e as leituras não são, na construção dos romances de Garcia-Roza – assim como nos de Camilleri, como veremos à frente – apenas elemento decorativo. Elas interferem na trama e mesclam-se a ela[6].

Despreocupado das tentativas de valorização do gênero policial – e da própria obra – por meio de atualizações e de interferências de concepções estéticas renovadas, Camilleri parece rir das classificações quando escreve as aventuras do comissário Montalbano. A ironia frente às classificações ou ao estatuto não-literário do policial aparece na boca do próprio comissário. Na parte final de Excursão a Tindari, depois de expor longamente a Mimì Augello, seu vice, a maneira como achava que os crimes haviam acontecido, ouve o comentário meio descrente: “Aí há certamente muita fantasia. Quando você se aposentar pode por-se a escrever romances”. Responde rápido: “Certamente escreveria ‘gialli’. Mas não vale a pena”. “Por quê diz isso?”, pergunta-lhe Mimì. E a resposta de Montalbano é irônica: “Os romances ‘gialli’, segundo uma certa crítica e certos catedráticos, ou aspirantes a tal, são considerados um gênero menor; tanto é verdade que nem aparecem nas histórias literárias”[7].

Apesar do desinteresse pela discussão dita genérica, Camilleri, é claro, aproveita-se de algumas de suas matrizes porque é inevitável: a constituição cuidadosa do perfil do investigador, por exemplo, é essencial para inserir o leitor no contexto literário que está sendo preparado. Montalbano é, nesse sentido, um autêntico personagem de policial. Dele sabemos manias, pequenos interesses. Conhecemos seu apetite brutal e sua intolerância com equívocos gastronômicos. O leitor, após algumas páginas, é capaz de se deslocar por sua casa, sentar-se à varanda e caminhar longamente pela praia, seguindo seus passos e reproduzindo seus rituais de concentração e de ensimesmamento. Em outras palavras, a familiarização do leitor com o detetive é produzida com cuidado, permitindo que nos sintamos em seu lugar quando for investigar algum crime. “Montalbano sono” – “Sou Montalbano”, frase com que o personagem se apresenta e que se tornou, na série televisiva, um dos bordões centrais, exerce efetivamente seu papel de primeiro contato, inclusive para destacar a especificidade daquele personagem e da disposição do narrador de aproximá-lo do leitor.

As variações, no entanto, prevalecem sobre as repetições. Além das mulheres perderem seu papel de sedutoras incontroláveis, outras mudanças de situação/ambientação ou de percurso narrativo ocorrem constantemente. Em primeiro lugar, falar que Montalbano soluciona crimes é, no mínimo, inexato. Parte significativa de suas aventuras não trata propriamente de crimes. Ocorrem em torno de situações simples, como traições conjugais ou desacertos da vida cotidiana de Vigàta. Outra parte trata de investigações sobre o passado. Casos já há muito esquecidos ou desconhecidos são trazidos à cena e instigam a curiosidade do comissário – a história central de O cão de terracota é o melhor exemplo: nele, a descoberta casual, dentro de uma caverna, de um casal de jovens (ao lado deles estava o cão do título do livro) mortos há décadas detona uma investigação improvável e de resultados, à primeira vista, inúteis.

Em outras histórias – como nas investigações centrais de A forma da água ou de Ladrão de merendas – a decifração do mistério não leva a resultado efetivo nenhum, seja porque a própria trama já se incumbiu de encaminhar o que devia ser encaminhado, seja porque envolve pessoas e situações acima de qualquer suspeita e punição. Os crimes, em outras palavras, não levam necessariamente a punições, nem a busca de esclarecimento tem esse objetivo.

 

Verdade e método

As investigações de Montalbano respondem ao impulso da curiosidade que, por sua vez, é ativada por seu desejo de verdade. Com consciência rara num detetive de romance, ele sabe, porém, que sua verdade não é absoluta. No conto “La revisione”, um juiz aposentado, atormentado pelos erros que podia ter cometido em sua vida profissional, pergunta-lhe se sempre esteve certo, em sua carreira, de que a pessoa que prendeu como culpada verdadeiramente o fosse. Horas depois – e atendendo ao pedido do ex-juiz de que demorasse para responder e que só o fizesse após um exame de consciência – Montalbano o procura e responde afirmativamente: “Tenho certeza, dentro de meus limites, matematicamente, da culpa das pessoas que prendi ou mandei prender. Mesmo se, algumas vezes, a justiça não as condenou e soltou-as”. O juiz, então, pergunta-lhe se essas decisões judiciais contrárias ao resultado de suas investigações o haviam irritado. “Em nada”, responde. E “por quê?” insiste o juiz. A resposta de Montalbano é clara: “Porque tenho experiência demais. Além disso, sei muito bem que existe uma verdade processual que caminha sobre um trilho paralelo ao da verdade real. Mas nem sempre os trilhos levam à mesma estação. Algumas vezes, sim, outras, não”[8]. Mais do que uma crítica à justiça e seus erros, há o reconhecimento da distinta perspectiva que orienta cada tratamento.

Em outro conto, Montalbano divide a cabine no trem noturno com um homem desesperado[9]. Durante a viagem ouve – pelo silêncio, pelo choro e pela paralisia – o impasse do homem, sem saber os motivos que o afligiam. Pouco antes do desembarque descobre, casualmente, que se trata de um homicida procurado pela polícia. Compreende os motivos do homem e, ao sair do trem, para marcar que o reconheceu, trata-o pelo nome e deseja-lhe boa sorte. Mais nada. A verdade em questão não era, para Montalbano, a da lei que, mais cedo ou mais tarde, prenderia o homem. Era a do momento que o havia levado ao crime e aos motivos torpes ou terríveis de seu ato.

E esse é o grande diferencial das histórias de Montalbano: a clareza da variedade e da provisoriedade de verdades que define seu, digamos, método de análise e que preside a elaboração cuidadosa das partes finais dos textos. Em A voz do violino, o melhor dos sete romances, Montalbano relembra um momento em que lhe foi pedido que disesse qual era a melhor qualidade de um policial. Provocou risos de seus colegas ao afirmar que era o “olho clínico” que definia o bom investigador. Olho clínico, percepção arguta.

Inicialmente, pode-se concluir que há aí uma repetição da velha imagem do detetive como um “private eye”, um olho contratado, preparado para enxergar aquilo que outros não conseguem ver. Idéia metaforizada, por exemplo, na lupa que o caracteriza desde os longínqüos tempos de Sherlock Holmes e do método indiciário que Conan Doyle, médico, transpôs para o mundo dos crimes e que caracterizou, como já notou Carlo Ginzburg, toda uma forma de conceber o conhecimento e sua produção no final do século XIX[10]. Do detalhe constrói-se a trama, do particular chega-se ao todo: esse foi e é o lema de inúmeros detetives de romance.

Mas a metáfora do olhar não tem, para Montalbano, apenas o sentido de buscar o detalhe para, a partir dele, chegar à verdade, que é, nesses termos, identificada ao todo, ao absoluto, ao irretorquível. Para ele, o olho inicia o processo de imaginação, fazendo com que brotem idéias sobre o que pode ter acontecido num dado momento, num certo local. Recria-se, imaginariamente, uma situação passada. Mas esse é apenas o cenário.

No diálogo final com o assassino do mesmo A voz do violino, Montalbano recria a história do crime, compõe cuidadosamente o contexto em que tudo ocorreu. Em seguida lhe diz que, agora, “vem a pior parte”. O assassino lhe pergunta se é a pior parte porque deve falar de um homicídio. Montalbano, boquiaberto, responde: “Acredita que é por isto? Não. Aos homicídios estou habituado. Considero esta a pior parte porque devo abandonar os fatos concretos e penetrar na mente de um homem, naquilo que ele pensa. Um romancista teria o caminho facilitado, mas eu sou apenas um leitor de livros que considero bons”[11]. Ou seja, construido o contexto, é necessário achar o lugar de cada um dos que participaram da cena. Reconhecida a posição dos participantes, é preciso entender sua perspectiva – outra metáfora do olhar. “Pior parte” do trabalho porque implica um descentramento, um reconhecimento da variedade de olhares que ocorre em qualquer situação.

Ao investigador não basta, portanto, estabelecer uma verdade e supô-la absoluta. Deve somar as várias verdades, extraídas das distintas perspectivas, e compor uma verdade capaz de articular esses muitos olhares. Em outras palavras, deve acrescentar ao cenário antes montado uma linha de horizonte, combinação e mescla possível de muitas verdades. Interessante é que a noção repisada de verdade plena e incontestável das histórias policiais não é substituida, nos livros de Camilleri, por um relativismo pleno, em que se aceite qualquer olhar e se o tome por distinto, sem hierarquizações ou sem limites.

A linha do horizonte presta-se a orientar as pessoas, é o ponto para onde todos os olhares podem convergir. Seu substrato é humano, ou seja, supõe variedade e mobilidade, respeita a interferência do acaso, mas também inclui regras e valores universais e universalizáveis. Por isso é possível ter certeza, como Montalbano respondeu ao ex-juiz, da culpa daqueles que prendeu: no cruzamento dos muitos olhares, produziu-se uma referência de culpabilidade que está em desacordo com os valores estabelecidos por aquele grupo de pessoas, por aquela sociedade. Mas isso não significa que, num outro embate de perspectivas, o processo judicial, mantenha-se a decisão.

Ao evitar o exagero lógico de boa parte das histórias policiais, expõem-se contradições e enganos de todos – criminosos ou investigadores. Montalbano ri de suas limitações (ou irrita-se com elas). Muitas vezes deixa os finais em suspenso, sem expor a resolução da trama ou sem fazer com que sua investigação produza efeitos práticos. O final de “Una mosca acchiappata a volo” é, nesses termos, exemplar. Após a difîcil investigação de um crime ocorrido vinte e cinco anos antes, descobre que um homem ficou injustamente preso por todo esse tempo. Escreve-lhe expondo o que concluiu e lhe pede que diga o que ele, Montalbano, deve fazer. A resposta de quem teve a vida arrasada pelo erro judicial é obedecida: nada[12].

Em várias outras histórias, abandona a investigação depois de encaminhá-la. Ou seja, mais importante do que punir é compreender – e conforme o caso expor – as ambigüidades que cercam as pessoas e suas relações. Do ponto de vista narrativo, o abandono interrompe o ritmo e recusa submeter o fechamento do texto à expectativa de um final eloqüente ou decisivo. Camilleri reforça, dessa maneira, o caráter precário de toda conclusão, de seus resultados ou implicações.

A postura de Montalbano, na prática, não chega a enunciar um método. Sua busca de uma verdade provisória ou conjuntural impede que se estabeleça qualquer fixidez ou linearidade na maneira de investigar ou de refletir. Sua maneira de pensar e desenvolver a investigação é comparado, de forma séria, à ramagem de uma oliveira sarracena, onde gosta de se sentar: “Montalbano, quando não sentia vontade do ar do mar, substituía o passeio ao longo do braço do quebra-mar pela visita à oliveira. Sentado a cavalo sobre um dos ramos baixos, pegava um cigarro e começava a raciocinar sobre o caso a resolver. Havia descoberto que, de alguma misteriosa forma, o intrincar, o envolver, o contorcer, o sobrepor, o labirinto, enfim, da ramagem espelhava quase mimeticamente o que acontecia dentro de sua cabeça, o entrelaçamento de hipóteses, o acavalar de raciocínios”. Bem à frente, quando está prestes a desatar o nó da trama, retorna à oliveira e coloca-se, agora, sob seus ramos: “Olhada de baixo, dessa nova perspectiva, a oliveira lhe pareceu maior e mais intrincada. Viu a ramagem complexa que não pudera ver quando estava dentro da árvore. (...) E quando mais a olhava, mais a oliveira se explicava, mais lhe contava como o jogo do tempo o entortou, o lacerou, como a água e o vento, ano após ano, o fizeram tomar aquela forma, que não era capricho ou acaso, mas consequência da necessidade”[13].

Depois de resolvido o caso, quando lhe perguntam como o fez, tem vontade de dizer que a oliveira lhe contou. Além da percepção da importância de variar a perspectiva, as passagens referem-se às idas e voltas e aos contorcionismos de um raciocínio “labiríntico”. Algo muito distante da linearidade lógica que se supõe existir na construção de qualquer conhecimento e que é repetida à exaustão pelos policiais. Montalbano sabe que idéia boa é idéia móvel e que não há raciocínio que não padeça de falta de lógica e que não sofra o impacto do tempo e de suas vicissitudes. Quando ele descobre, no início de L’odore della notte, que a oliveira foi derrubada, a metáfora da mudança dos tempos se manifesta, por sinal, de forma contundente. Representa o cansaço que sente perante um mundo cada vez menos compreensível e cria o cenário para que extravase uma fúria vândala contra aqueles que derrubaram a árvore.

Talvez caiba melhor, portanto, no lugar de “método”, falar em postura crítica. Afinal, é a crítica que permite dimensionar a variedade de vozes e olhares e, por meio de sua mesclagem, transpor o ocorrido no passado numa outra situação, traduzir para outro código e sintetizar as verdades. Daí ser tão importante, nos livros de Camilleri, a condição de leitor voraz de Montalbano. Leitor, como o próprio personagem diz, “de livros que considera bons”. É da leitura e das associações que ela permite que se produz a crítica. A própria inversão de padrões que Camilleri produz no “giallo” deriva, em grande medida, dos “gialli non gialli” escritos por Leonardo Sciascia[14].

Não é por acaso que alguns dos casos de Montalbano são resolvidos a partir de comparações – ou por meio de informações – tiradas de livros. No conto “Tocco d’artista”, por exemplo, o conhecimento do autor e do livro preferidos da vítima orienta a reflexão e facilita a compreensão da trama que levou à sua morte. Em “Come fece Alice”, a leitura sugere o espelho como recurso de interpretação[15]. E também é uma leitura, absolutamente casual, que, em O cão de terracota, reabre a investigação, naquela altura já encerrada, e lhe dá novo rumo. Em Excursão a Tindari, dois livros, um de Joseph Conrad e outro escrito pelo jovem personagem assassinado logo no início da história, dão os recursos fundamentais para a compreensão do que se passou. A leitura, dada sua inevitável função crítica, exerce papel construtor do cenário, ajuda a entender o olhar alheio e a interpretá-lo, facilita a montagem da linha do horizonte, ou seja, da articulação e síntese das verdades.

Em vez de verdade e método, duplo que costuma ser associado ao trabalho investigativo – seja o da polícia, seja o do cientista, Camilleri afirma o valor das verdades múltiplas, da compreensão do (e respeito ao) olhar alheio, da importância da verdade produzida no contexto de muitas perspectivas. Em vez de método, crítica. E em vez de um “olho privado”, muitos olhares. Salvo Montalbano, afinal, não é um bruto. E os livros policiais de Andrea Camilleri, não são mero entretenimento, são literatura.

 

Júlio Pimentel Pinto é professor no Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), Brasil, e autor, entre outros, de Uma memória do mundo. Ficção, memória e história em Jorge Luis Borges (São Paulo, Estação Liberdade, 1998) e A leitura e seus lugares (São Paulo, Estação Liberdade, 2004).

 



[1] texto originalmente publicado em A leitura e seus lugares (São Paulo, Estação Liberdade, 2004).

[2] As edições brasileiras dos dois romances históricos são pela Bertrand Brasil (Rio de Janeiro, trad.: Giuseppe D’Angelo e Maria Helena Kühner). A primeira edição italiana de Um fio de fumaça foi por Garzanti (1980). La concessione del telefono, pela Sellerio, é de 1998. Le inchieste del comissario Collura saiu pela Libreria dell’Orso. A primeira edição de Il corso delle cose foi pela Lalli. As edições posteriores desses e dos demais livros são de Sellerio Editore (Palermo), com exceção de La mossa del cavallo e La scomparsa di Patò, que sairam pela Mondadori (Milão).

[3] Edições brasileiras (Rio de Janeiro, Record, trad.: Joana Angélica D’Ávila Melo): A forma da água (1999), O cão de terracota (2000), Ladrão de merendas (2000), A voz do violino (2001), Excursão a Tindari (2002), Um mês com Montalbano (2002) e O cheiro da noite (2003). As edições italianas dos romances são por Sellerio Editore, de Palermo. As primeiras edições dos livros de contos foram publicadas por Arnoldo Mondadori Editore, de Milão. As citações de contos usadas nesse texto são de edições posteriores, publicadas por Oscar Mondadori, de Milão (Un mese con Montalbano, 2000; Gli arancini di Montalbano, 2001). La paura di Montalbano, que reúne três histórias longas e três curtas, e La prima indagine di Montalbano, reunião de três novelas, foram também editados por Arnoldo Mondadori.

[4] Tony Bellotto. Belini e a esfinge (1995); Belini e o demônio (1997); BR163 (2001), todos publicados pela Companhia das Letras (São Paulo). Em BR163, não aparece Remo Bellini. Duas histórias cruzam-se e o policial é uma espécie de referência para o clima de suspense que se desenrola nelas.

[5] Joaquim Nogueira publicou dois romances: Informações sobre a vítima (2002) e Vida pregressa (2003), ambos pela Companhia das Letras (São Paulo).

[6] Luis Alfredo Garcia-Roza. O silêncio da chuva (1996); Achados e perdidos (1998); Vento sudoeste (1999), Uma janela em Copacabana (2001), todos publicados pela Companhia das Letras (São Paulo).

[7] La gita a Tindari. p. 261.

[8] “La revisione”, in Gli arancini di Montalbano (Milão, Oscar Mondadori, 2001), p. 203.

[9] “Il compagno di viaggio”, in Un mese con Montalbano (Milão, Oscar Mondadori, 1999).

[10] Carlo Ginzburg. “Sinais. Raízes de um paradigma indiciário”, in Mitos, emblemas, sinais. (São Paulo, Companhia das Letras, 1989, trad.: Federico Carotti, orig.: 1986). O tema é retomado em outros livros, como Il giudice e lo storico (Turim, Einaudi, 1991) ou no mais recente, Rapporti di forza. Storia, retorica, prova. (Milão, Feltrinelli, 2000).

[11] La voce del violino. p. 196.

[12] “Una mosca acchiappata a volo”, in Gli arancini di Montalbano.

[13] La gita a Tindari. pp. 98 e 204.

[14] A expressão “giallo non giallo” (“policial não policial”, significando o desrespeito às matrizes do gênero) foi usada por Italo Calvino numa carta a Leonardo Sciascia, caracterizando um livro deste. É possível aplicá-la a boa parte da obra de Sciascia, que também é siciliano e cuja influência sobre a obra de Camilleri merece um estudo mais cuidadoso do que é viável nesse ensaio.

[15] “Tocco d’ artista” e “Come fece Alice”, in Un mese con Montalbano.